Marco Antônio Jardim Melo
“Descarta os conceitos. Esquece o que você já viu, ouviu, cheirou e ou a língua – nada mais está selado”. Nem o banho que tomo todo eleito dia parece ter uma síntese. Nem o banho de J., meu gato persa branco. Nem a desinformação dos direitos do homem, quando, por omissão, escolhe seus votos. Escolho os preparados de beleza, a depender do dia ou noite. Distribuo ordenadamente sobre a bacia de louça. Experimento, no tato, a água quente do regador. Respiro o vapor. Ligo o rádio cipó. Toco o corpo, a mente, o entendimento. Deixo a forma molhar, da nuca ao dorso, das costas duradouras ao derrière, da parte interna das coxas à planta dos pés. De tudo escorre lágrima, sorriso, gozo e dança. Meu banho não é liturgia. Mas tem oração contida.
Ainda que reflita certa falta de lucidez, por parecer futilidade, meu banho é simplicidade. Bênção, como a de Francisco, o papa. Ou a da freira que recebi em dia de domingo. É uma embriaguez umedecida sem cerimônia. Uma sentença nua de júbilo sobre os membros com gosto de azeite, ou vinho, ou sangue. Gosto de jambu e tucupi. De mangue. Tomate seco temperado, castanhas e leite condensado. Gosto de transgressão da ordem imperativa da mediocridade. Gosto de azeviche de chocolate. Meu corpo é gosto. Muito além da extrema unção. Parte de uma charada que define uma inteira palavra. É uma ideia abstrata para os demais e tão concreta para mim quanto o ar que seca os fios de cabelo. Não a ideia distraída na morte de outras práticas. Por hora, os fios dessa são macios. Caindo corredios sobre o rosto de poros abertos e de silêncios. Sim, emoções beatíficas, que se abstêm de falar. Daí borrifo um crisma de aroma penetrante e altivo. Notas de lima, bergamota, limão e mandarina. Visto-me ao estilo très chic comedido. Argolas, boina de abas curtas, cachecol de listras, cardigã, calça reta de afaiataria e uma roupa de baixo moldada para ressaltar o maço e outras ausências. “Você é um rapaz de sorte”, disse alguém à boca que beijei nesta noite. Senti, no reflexo do ósculo, o sabor do meu hálito ungido. Parecia água doce, benta, com um vento morno soprando insistente aquela missa. Minha língua parando o tempo, penetrando a outra ilha deserta, mergulhada em saliva, por entre os lábios, pelas faces internas, percorrendo o véu palatino. Amor incondicional? Eu até posso compreender afetos, permitir quinze dias de encontros às escondidas, até concordar em pagar por sexo numa madrugada ébria, mas não consigo mais entender histórias de amor. Blasfêmia? Perdoem-me Kenio, Marcos, Crist, Cristo, e outros profetas. Sem contar os que nada teriam a dizer. Vinícius se aproxima e pergunta ao pé do ouvido: “Esta boca que você beija é a mesma da semana anterior" crossorigin="anonymous">